segunda-feira, 11 de maio de 2015

O Castelo Vogelod de F. W. Murnau (Schloß Vogelöd, 1921)


Como poderiam os filmes em preto e branco fazer a distinção entre noite e dia? O espectador de cinema contemporâneo conhece muitas maneiras, sua cinefilia o faz saber as resoluções criativas conquistadas por décadas de exercício prático do fazer fílmico. Em minha mente salta logo a imagem do cinema noir e os belíssimos jogos de sombras. Se neste texto falaremos sobre o cinema alemão, nada mais justo do que lembrar do cinema expressionista, influenciador dos filmes noir das décadas de 1940-50. Mas existe uma diferença muito grande entre o trabalho feito pelos expressionistas de 1920 dos cineastas da década de 1940: os primeiros utilizavam uma luz achatada, que iluminava a tudo com equidade. As sombras eram desenhadas ou provocadas por distorções nos cenários. Nos filmes noir a sombra provinha de um jogo de luz, com o posicionamento do refletor em lugares estratégicos para que iluminasse determinada parte do cenário e outra ficasse no escuro.

Mas como poderiam os espectadores não fazer a distinção entre dia e noite? Entre a luz exterior e interior? É óbvia a diferença, mesmo nos filmes em preto e branco. Óbvia quando se filma no exterior "de verdade". O que isso significa? Que a luz natural é diferente da luz artificial habitualmente utilizada para a iluminação dos cenários dentro dos estúdios fechados. Mas poucos eram os diretores - e mais importante ainda, os produtores, filmar fora dos estúdios era de custo muito maior do que hoje - que se arriscavam filmar fora das dependências de seus estúdios, onde tudo podia ser milimetricamente controlado (incluindo os gastos). As filmagens em exterior ficavam exclusivas para aquelas cenas maiores, como as batalhas de Nascimento de uma nação. Assim, tanto a luz de interior quanto a de exterior poderiam ser de muita semelhança porque filmadas em estúdio se valendo de semelhante equipamento.


Solução: o uso de cores. Mas o filme não era preto e branco? Sim, mas a película podia ganhar diferentes colorações únicas: o quadro podia ficar avermelhado, ou alaranjado, ou mesmo azulado (imagem acima). Estas diferentes cores eram exploradas pelos cineastas para poder fazer esta diferenciação de cenários e não prejudicar o visionamento da obra com imagens menos nítidas devido à escuridão das cenas. Tal técnica foi utilizada maravilhosamente em A carruagem fantasma, por exemplo, de Victor Sjostrom. E neste O castelo Vogelod, de Murnau. O experimento de Murnau neste filme demonstra maior profundidade que o de Sjostrom em seu clássico sueco, uma vez que no meio das cenas a cor da imagem muda quando um personagem em cena acende a luz: explicitando a intenção do diretor nestes momentos.

Fora esta experimentação, O castelo Vogelod parece um filme em que Murnau estava muito pouco a vontade de filmar. Não há grandes cenas, e a interrupção da narração por letreiro é constante - talvez a maior de seus filmes. O desenrolar da ação pelos personagens é truncado, a trama decorre por suas falas, e o passado que é por eles evocado fica somente em seu diálogo - novamente, apresentado pelos letreiros que cortam o ritmo da ação. Longe de ser um dos melhores filmes do diretor, Vogelod apresenta como ponto positivo o desenvolvimento da mise-en-scène que viria a utilizar em seus filmes posteriores. O cinema de Murnau se posiciona fortemente contrário à montagem, ao contrário de seus pares vanguardistas de 1920. O que ele não fica contrário é das sobreposições, dos truques de montagem. O elogio de André Bazin ao seu cinema fica nítido ao se assistir a este filme: a câmera não fragmenta o cenário. Mas por buscar a narrativa nas falas de seus personagens, é o ritmo do filme que fica fragmentado, deixando de lado a especificidade cinematográfica (a imagem em movimento) para poder contar a história com palavras escritas.


Numa de suas melhores cenas, Murnau apresenta-nos o sonho de um dos hóspedes do castelo que dá título ao filme. O homem - alívio cômico do filme de suspense - acorda em sua cama e vê a mão de um monstro do lado de fora da sua janela. A tal mão consegue abrir a janela, entrar no quarto e levá-lo. Acordando em seguida, o homem vê que tudo não se passara de um sonho, mas como o castelo está passando por alguns problemas com seus hóspedes estranhos - que desaparecem ou são suspeitos de crimes - ele prefere deixar a residência na manhã seguinte.

O sonho é envolto por uma aura de suspense. Algo vai errado com alguns hóspedes do castelo. Um homem sai já no fim de uma tarde chuvosa para caçar. A chegada de um padre é anunciada. O dono do castelo afirma ter capacidade de prever o futuro, e dita um desfecho trágico para aquelas férias. Se isso abala o homem que tem o sonho a ponto de ele encurtar sua jornada no castelo, os demais preferem permanecer por lá e acompanhar o desenvolver da ação como se fossem espectadores de Hitchcock: voyeurs que dão pitacos sobre o que virá a seguira (e ainda assim, são surpreendidos com o desenvolver das ações). Uma pena a participação de Murnau na construção deste filme ser tão pequena. Como podemos atestar com Hitchcock, o poder das imagens na construção de suspense é vital.


Quando o estranho padre chega ao castelo, uma das mulheres recém-chegadas pede logo para vê-lo. Parecem ser velhos conhecidos. Ela, então, rememora um passado que já é familiar ao padre. Ela ainda se martiriza pela morte do marido, ao que a cena termina com um close-up - um dos raros recursos de fragmentação do espaço cênico executados por Murnau durante o filme - misterioso. Esta imagem teria ganho contornos mais profundos de mistério se a cena seguinte não retornasse para a continuação da conversa do padre com a mesma mulher. A impressão que dá é de que o fabuloso Murnau está lá, mas o roteiro o impede de aparecer. Não que a trama não seja bem desenvolvida, ela simplesmente não consegue se adaptar à arte das imagens em movimento, e insiste em retornar à arte das letras.

Carl Mayer, roteirista desta obra, parece muito pouco confortável com o trabalho de uma obra que não é sua - tanto que poucas vezes em sua carreira voltou a tratar histórias não-originais. O desenrolar da história é claro, mas muito pouco se casa com uma história a ser contata por meio do cinema. Talvez ficasse melhor para o cinema sonoro, mas ainda assim muito refém de um texto sendo recitado pelos atores. Mayer, que mais tarde trabalharia com Murnau em A ultima gargalhada, filme sem letreiros, mostra bem a sua capacidade de contar uma história para cinema. A parceria rendeu muita coisa extraordinária para que venhamos diminuir devido a este percalço. E mesmo aqui Murnau demonstra ser um diretor extraordinário. A quebra do ritmo pelos letreiros não impede que vejamos sua capacidade de construção de cena, de posicionamento de atores: a exemplo da cena em que, durante o jantar, o dono do castelo pergunta a seu hóspede sentado ao seu lado se ele já matou alguém. Ao fundo do homem perturbado com a pergunta vemos uma pintura em que homens caçam um animal. O homem interpelado toma o lugar do animal no quadro e fica sob a mira das armas dos caçadores. Somente a genialidade de Murnau pode nos proporcionar momentos assim.


[sobre a segunda imagem: a mulher acusa o irmão (fora de quadro) de seu ex-marido de ser o assassino (do ex-marido). Perceba como Murnau enquadra o verdadeiro assassino de tal modo que seja ele que fique sob a acusação: é ele que é posto como culpado pelo diretor, ao contrário do que sua personagem mentirosa diz. Ela aponta o assassino e Murnau nos mostra o verdadeiro assassino. Fantástico, não?]

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