segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

[continuação]

Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.

NOITE E NEBLINA E A REPRESENTAÇÃO JUSTA

Quando o fim da II Guerra completou dez anos, as cicatrizes ainda não haviam cicatrizado. Na Itália, o cinema não deixava a população esquecer. O povo começava a ganhar consciência do que acontecia, e isso não agradou à burguesia. Na França, que fazia um cinema mais sentimental e menos visceral do que os italianos, surge um filme para sacudir as estruturas de quem o assistisse. E muitos foram os que viram. Noite e neblina (1955), curta-metragem de Alain Resnais, surge no cenário cinematográfico como uma das provocações mais interessantes sobre como fazer um filme sobre aquilo que é tão difícil de se filmar: o holocausto. Como filmar os campos de concentração? Como reagir frente aquelas imagens de arquivo que nos apresentam montanhas de óculos, de sapatos, de cabelos, de cadáveres...? Como fazer uma representação justa daquilo?

Em texto para a revista Contracampo, Luiz Carlos Oliveira Jr. Faz um questionamento que ele atribuí ao já citado Godard: “o cinema, ao não filmar os campos de concentração e extermínio no momento mesmo em que eram construídos, teria cometido um erro imperdoável?” (OLIVEIRA JR, s/d). Esta lacuna que surge na representação moderna, em que o cinema apresenta-se como frente absoluta no registro do real, poderia ter aberto espaço para as representações equivocadas deste que talvez seja o trágico mais lembrado na sétima arte. O cinema não viu o início dos campos, mas viu o que deles resultou (esta lacuna poderia fazer com que este fato parecesse irreal, uma fantasia do cinema?). Surge neste momento a necessidade de se fazer uma representação justa. “Em Noite e Neblina, Resnais inaugura esta justeza do olhar, esse reconhecimento de que o cinema chegou depois” (idem).

A câmera de Resnais passeia pelos campos de concentração. O travelling executado sobre os trilhos do trem que outrora trazia ao campo prisioneiros, agora é um eco dos fantasmas daqueles que não podemos esquecer. E este é o trabalho do cinema. Não é transformar o holocausto num espetáculo, mas fazer-nos lembrar para que ele não se repita. Esta câmera que percorre os muros dos prédios agora abandonados, pede para que eles não se percam no caminho da história. “A principal característica da exterminação nazista dos judeus na Segunda Guerra foi sua invisibilidade, sua obscura e historicamente mal explicada invisibilidade” (idem). Esta invisibilidade que agora, por meio daquele canal que uma vez se cegara e não fora capaz de enxergar o que acontecia, tenta se redimir e apresentar para o mundo que aquilo, um dia, realmente aconteceu.

Noite e neblina apresenta-se, assim, como um documentário de curta-metragem que une as imagens de arquivo às imagens atuais e em cores dos campos de concentração (atuais do seu ano de produção, 1955). Por meio da montagem que liga o presenta ao passado, mostrando ao mesmo tempo sua união e sua distância cruel, Resnais monta um discurso visual para dizer-nos que não podemos voltar ao passado, mas também não podemos esquecê-lo. As paisagens que hoje apresentam flores, outrora foram palco de um espetáculo tenebroso. Resnais liga também aquilo que é mostrado à voz de Jean Cayrol, escritor sobrevivente do holocausto, que nos narra um texto que não se prende por meio de metáforas e que diz:

Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo uma pradaria com voo de corvos, messes e jogos de ervas, mesmo uma estrada onde passam carros, camponeses, casais, mesmo uma aldeia para férias com um campanário, podem levar simplesmente a um campo de concentração. (RESNAIS, 1955).

O TRAVELLING DE KAPÒ

O famoso travelling de Kapò parece muito simples quando visto na tela, de um ponto de vista prático. Mas na época em que fora feito, 1959, dependia de enorme maquinário para que fosse possível mover a câmera pelo cenário até o enquadramento desejado. Esta simplicidade que aparenta para um espectador do século XXI se dá pelo seu contato com câmeras pequenas, portáteis. A construção de um travelling, na época da produção do citado filme, se fazia difícil e dispendiosa. Necessitava-se que o cineasta, para fabricar este movimento, o ter idealizado por um longo tempo e ter a convicção do que estava a fazer com seu filme.

A recém-reformulada escola crítica de cinema francesa estava a ganhar cada vez mais adeptos. Numa atitude rara até então, discutia-se a forma dos filmes e não o seu conteúdo, tão somente. Esta geração, que sofreu crescendo em meio à guerra, agora procurava juntar os cacos de uma Europa destruída. Da parte destes jovens que se dedicavam integralmente ao cinema – muitos deles que enxergavam no dispositivo cinematográfico a potencialidade de mudar a sociedade –, coube discutir a forma como se representava o irrepresentável: o holocausto, a bomba de Hiroshima... Noite e neblina surgiu em 1955 mostrando como o assunto deveria ser abordado: com a distância de quem não pode voltar no tempo e mudar o que aconteceu. Mas nem todos escutaram o que Jean Cayrol disse, ou o que Alain Resnais mostrou. E num texto curto, com menos de uma página, Jacques Rivette encheu uma edição da revista Cahiers du Cinéma de raiva contra um filme numa crítica que tomava menos que uma página. A força deste golpe foi tamanha que até hoje ecoa (como é o caso deste estudo). Em um de seus últimos escritos, o também crítico de cinema Serge Daney escreve:

Em seu artigo, Rivette não contava o filme. Ele se contentava, em uma frase, descrever um plano. A frase, que ficou na minha memória, dizia assim: “Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida, se jogando sobre o arame farpado eletrificado: o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée[1], tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo.” Dessa forma um simples movimento de câmera poderia ser um movimento a não se fazer. (DANEY, s/d)

Kapó é o filme que ficou famoso pelos motivos que nenhum outro deseja. O “ato abjeto” promovido por Gillo Pontecorvo em seu filme fez com que esta obra em particular fosse vista com olhares de desaprovação, mesmo por quem nunca chegou a vê-lo. Porque não é necessário ver um filme quando há algo de tão claro em sua construção (sua forma) que o torna horrendo. E não foi o travelling, somente, que mudou o destino de Kapò. O tão citado travelling de Kapò é, na verdade, apenas o ápice do horror promovido pelo diretor em seu filme. O travelling torna-se a representação de algo maior. Mas ainda assim permanece sobre aquela câmera que corre em direção ao rosto de uma moribunda Emanuelle Riva a expressão mais grave da abjeção. Este termo dito aqui mais de uma vez refere-se ao título do texto escrito por Rivette sobre Kapò, “Da abjeção”.

A abjeção a Kapò nos dá as bases de uma discussão acerca da representação de um cinema de viés político, surgido após a guerra. Seria moral, da parte do cineasta, moldar o seu filme sobre o holocausto partindo de princípios dramatúrgicos comuns? Como já havia sido colocado por Noite e neblina, não podemos voltar no tempo, retornar àquele momento e mudar o que aconteceu. O cinema deve manter distância daquele momento, porque como ele não o mostrou chegando ele também não pode mais tentar mudar o que aconteceu. Mas quais seriam os motivos que poderiam fazer de um filme sobre o holocausto como Kapò ser tão abjeto?




[1] Plano em que a câmera apresenta-se mostrando algo de baixo para cima.

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