domingo, 26 de outubro de 2014

Andrei Tarkovski


"A questão sobre o que constitui a linguagem do cinema está longe de ser simples, não estando clara nem mesmo para os profissionais. Sempre que falamos sobre a linguagem do cinema, moderno ou não, tendemos a colocar em seu lugar uma série de métodos atualmente em voga, em geral tomados de empréstimo às artes contíguas. Ficamos, assim, sob o domínio dos postulados fortuitos e transitórios do momento. Torna-se possível, por exemplo, afirmar hoje que 'o flashback representa a ultima palavra do cinema', e declarar amanhã, com a mesma arrogância, que 'qualquer desarticulação do tempo não tem mais lugar no cinema, que a tendência, hoje, é o desenvolvimento clássico do enredo'. Um método pode, por si próprio envelhecer ou ajustar-se no tempo? A primeira coisa que se deve estabelecer, ainda, é a intenção do autor; só depois é que se deve perguntar por que ele lançou mão deste ou daquele recurso formal. Não estamos, por certo, discutindo a adoção indiscriminada de métodos superados pelo uso - isso é a imitação e artesanato mecânico, e, como tal, não é um problema artístico.

Os métodos do cinema certamente se modificam, como os de qualquer outra forma de arte. Já mencionei que os primeiros espectadores saíam correndo da sala de projeção, aterrorizados diante da máquina a vapor que avançava da tela em sua direção, e como gritavam de horror quando achavam que um close-up era uma cabeça decepada. Hoje em dia esses métodos, por si próprios, não provocam emoção alguma e usamos como sinais de pontuação aceitos por todos aquilo que ontem parecia uma descoberta eletrizante; e não ocorreria a ninguém sugerir que o close-up está fora de moda.

No entanto, antes de se tornarem de uso comum, as descobertas de métodos e procedimentos tem de se tornar o único recurso de que o artista dispõe para comunicar, através da própria linguagem, e tão plenamente quanto possível, a sua visão pessoal do mundo. O artista nunca vai em busca do método pelo método, ou apenas em nome da estética; ele é dolorosamente forçado a desenvolver o método como um meio de transmitir com fidelidade a sua visão de autor acerca da realidade.

O engenheiro inventa máquinas em função das necessidades cotidianas das pessoas - ele quer tornar o trabalho e, portanto, a vida, mais fáceis para elas. Porém nem só de pão... Pode-se dizer que o artista enriquece o seu próprio arsenal com o objetivo de fomentar a comunicação e levar as pessoas a se compreenderem melhor, nos níveis intelectuais, emocionais, psicológicos e filosóficos mais elevados. Assim, também se pode dizer que os esforços do artista têm por objetivo melhorar e aperfeiçoar a vida das pessoas, de facilitar a sua compreensão mútua.

Não que um artista seja necessariamente simples e claro no retrato que faz de si mesmo ou em suas reflexões sobre a vida - que podem ser de difícil compreensão. A comunicação, porém, sempre exige esforço. Sem ele e, na verdade, sem um engajamento apaixonado, jamais poderá haver entendimento entre as pessoas.

Assim, a descoberta de um método torna-se a descoberta de alguém que adquiriu o dom da fala. E, a essa altura, já podemos falar do nascimento de uma imagem, ou seja, de uma revelação. E os recursos que ainda ontem tinham a finalidade de transmitir uma verdade alcançada com dor e sacrifício, amanhã podem muito bem se tornar - como de fato se tornam - um estereótipo mais que desgastado."



(TARKOVSKI, Andrei; Esculpir o tempo; tradução: Jefferson Luiz Camargo, p. 119 - 121)

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